DIA MUNDIAL DO TEATRO / 2006

Mensagem d'A Escola da Noite

Estamos aqui há catorze anos.

Aqui, à porta de um Teatro vazio
e fechado
aqui.
à espera.
Disseram-nos que vinha alguém com a chave
para abrir o Teatro.
Disseram-nos que vinha alguém.
Aqui estamos,
há catorze anos, à espera.

Houve gente que veio, entretanto:
o primeiro veio meio desconfiado
era um armário desajeitado
pedia ovos com chouriço
depois de almoçar
como sobremesa.
Chamava-se Tomeo
continua a receber prémios
e outros queridos monstros
na sua Catalunha.
Deixou-nos um enigmático
“mañana mejor”
amanhã será melhor
amanhã será melhor.

Talvez por isso, logo de seguida,
nos apareceu alguém
chamado Marivaux
Pierre Carlet, vinha de França
e também não trazia chave,
mas       garantiu-nos
que o amor triunfaria
sobre toda a espécie de muralhas
que se fechassem
à volta dos homens
mesmo as da sabedoria e da razão.

Não foi com surpresa
que vimos chegar então
um sujeito mal disposto
com chapéu de abas largas
snifando rapé
vociferava contra os “tramelos
da burocracia e do poder
– A cultura é contraposição
não é flor na lapela nem é ilustração!
O homem agoniza
na Europa do progresso e do preconceito”.
Ele era germânico
para pronunciar o seu nome
era necessário um movimento
com a garganta como quem escarra,
chamava-se Achternbusch.
Ele foi
e nós continuámos aqui
à porta do Teatro fechado
à espera da chave.

Quem veio a seguir
ficou connosco até hoje
trazia umas roupas esquisitas
e fora de moda.
Disse que já cá tinha estado
várias vezes demoradamente
tinha mixed feelings
sobre este lugar.
Chamava-se Vicente.
“pois Coimbra assim nos cimbra
que não há quem preto alcance.
Yo me estaba em Coimbra
cidade bem assentada:
pelos campos do Mondego
não vi palha nem cevada”.
Deixou-nos o aviso
mas brincou connosco
com uma serpe e um leão
e uma infanta aprisionada
no emblema da cidade.
Disse que há quinhentos anos
que não jogava àquilo.
Volta e meia aparece-nos
na sua carruagem
traz sempre um jogo antigo
para nos divertir
enquanto esperamos
o senhor que vai chegar
com a chave na mão
para abrir o Teatro.

Numa das várias primaveras
cresceu-nos uma planta
debaixo dos pés
tinha o luxo da magia
e a insídia do veneno
era uma Mandrágora.
Nada que o inverno
do nosso descontentamento
não tivesse secado.

E veio o senhor Büchner
outro alemão recalcitrante
“paz nas choupanas
morte aos palácios”
estava sempre a dizer
“paz nas choupanas
morte aos palácios”

mas a morte não chegou
aos Teatros Nacionais
que continuam o luxo
e a ostentação dos pais.
Nem a chave chegou
à paz podre
das “províncias” deste rectângulo.

No entanto
“o mundo era belo e vasto”
em “Leôncio e Lena”,
a brincadeira
que o senhor Büchner,
um profeta, nos trouxe,
e acabava
com uma proposta infantil
“Vamos construir um Teatro?”

Por isso
continuámos a esperar
o senhor
que há-de chegar
para abrir o Teatro.

Em vez dele
chegou um mensageiro
que quase não podia falar
e deu-nos a notícia brutal:
os Persas
tinham sido derrotados
pelos gregos
na batalha de Salamina.
E vieram todos
ao Pátio da Inquisição.
As Troianas
derrotadas também
por Atenas
também vieram.
Um tal de Ésquilo
e um tal de Eurípides
conduziam-nos.
O Pátio
ficou cheio de vencidos
uma pequena multidão que nos acotovelou
mas o tal de Ésquilo
e o tal de Eurípides,
que eram do lado
dos vencedores
proclamavam
a dignidade dos vencidos
como imprescindível
à glória dos vencedores,
proclamavam eles,
diziam que vinham
de uma Grécia muito antiga
e nos traziam
essa mensagem
como oferta
para consolar a nossa espera.

Assim
se foi alimentando
a nossa espera.

“O autor é uma fraude
os actores são uma fraude
e os espectadores também são uma fraude
e tudo junto é um perfeito absurdo
para não dizer
que se trata de uma perversidade
que já dura há milénios
O teatro é uma perversidade milenária”.
Com isto nos chegou
Bruscón
que se intitulava Fazedor de teatro
e nos foi apresentado
por um outro
que se dizia fazedor/desfazedor
chamado Bernhard,
Thomas Bernhard.
Com um boné colado à cabeça.

Vieram muitos
enquanto esperávamos.
Estamos aqui há catorze anos.

Uns eram almas penadas
que se diziam
assassinados pelos fascistas
como Federico García Lorca
meio aciganado.
Outro vendeu-nos
um Acto Cultural muito duvidoso
que nos obrigou
a receber
o próprio Cristóvão Colombo
já muito ressabiado
e a aturar a histeria
de Isabel de Espanha
a Católica.
Chamava-se Cabrujas
e era sul-americano.
Dessas Américas
veio também
Nelson Rodrigues
que não sabia
se gostava mais de teatros
se de futebol.

Portugueses de cepa
laureados de estigma
e ainda por cima contemporâneos
Vicente Sanches
Abel Neves
tudo passou por aqui
a cumprimentar-nos
ou a acrescentar
perturbação.

Vieram putas,
chulos,
alunos do secundário
às camionetas,
desdenhadores melífluos,
chegaram mesmo
a vir alguns críticos,
traidores encartados
e aprendizes de Macbeth
garantiam que “há punhais
nos sorrisos dos homens”,
membros de júris
juravam
que não vinham.

Mas veio o Jacques
e também o seu amo
D'Alembert não veio
mas veio Diderot
todos puxados
por Kundera
o dissidente
Jacques :             Quero que me leveis em frente.
Amo :                         Mas em frente é para onde?
Jacques :             Vou revelar-vos
um grande segredo
uma astúcia imemorial da humanidade
Para a frente
é em qualquer direcção.
Amo :                         Em qualquer direcção?
Jacques :             Para onde quer que olheis
é sempre em frente.
Amo :                         Mas é magnífico, Jacques,
é magnífico!

Não,
Nós vamos esperar!

até o presidente da Câmara
prometeu abrir
prometeu há dois anos
era Dia Mundial do Teatro
e não chovia
prometeu há quatro anos
prometeu há oito
prometeu há dez
os ministros prometeram
os vereadores
os varredores
municipais até conviviam
connosco
falavam mais baixo
para que a peça acabasse
os varredores são nossos camaradas
eles varrem o lixo
e nós a boçalidade
a pesporrência
a prepotência
dos políticos
os conflitos de interesses
o lixo
eles e nós varremos o lixo
do entretenimento
eles calavam-se
quando passávamos as palmas enlatadas
do senhor Beckett
eles também queriam mijar
como nós
e não tinham onde
por isso trouxemos
para todos nós
o urinol
do senhor Duchamp
mijávamos alternadamente
no lixo
e na arte
e fomos felizes
e subsidiodependentes
ao relento.
além as estrelas são a nossa casa

Vamos esperar
estamos aqui há catorze anos

Na prestigiada ausência
dos presidentes da câmara
dos ministros actuais e futuros
dos directores municipais de cultura
com tanto futuro quanto passado
pelo meio da unanimidade burra
mas musical
às vezes chove
Catorze dias mundiais do teatro
às vezes chove outras não
Empurrando armários
em Cerejais inventados
melodias interrompidas
pela insensibilidade
dos presidentes da junta
e do “bacalhau quer alho”
aqui estaremos no meio da feira
gargalhando
os “Dias Felizes”
que ainda não fizemos
atolados até ao pescoço
na “perversidade milenária”
do teatro      da arte     da loucura
às vezes perdidos numa noite suja
Aqui
à porta de um Teatro vazio
e fechado
vamos esperar.
Disseram-nos que vinha alguém
com a chave
para abrir o Teatro.

António Augusto Barros
A Escola da Noite

Coimbra, 27 de Março de 2006.

 

esp. público