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O Juiz da Beira

de Gil Vicente

estreia em Coimbra, a 17 de Julho de 2003

Oficina Municipal do Teatro

total de espectáculos - 47 (Coimbra, Covilhã, Vila Nova de Foz Côa, Aveiro, Figueiró dos Vinhos e Castelo Branco)
total de espectadores - 3.535


28ª produção - A Escola da Noite©Julho2003


Ficha Técnica:
•••Encenação e dramaturgia: António Augusto Barros.
•••Elenco:
••••••••• Juiz > António Jorge
••••••••• Judeu > Carlos Marques
••••••••• Irmão Preguiçoso > Carlos Marques
••••••••• Porteiro > Margarida Dias
••••••••• Irmão Amador > Margarida Dias
••••••••• Vasco Alonso > Marta Gorgulho
••••••••• Moço > Marta Gorgulho
••••••••• Irmão Brigoso > Marta Gorgulho
••••••••• Escudeiro > Ricardo Correia
••••••••• Inês Pereira > Sílvia Brito
••••••••• Ana Dias > Sofia Lobo
••••••••• João Domingues > Sofia Lobo
•••Espaço cénico: António Augusto Barros.
•••Figurinos: Ana Rosa Assunção.
•••Adereços: António Jorge.
•••Desenho de luz: Orlando Worm.
•••Grafismo: Ana Rosa Assunção.
•••Registo fotográfico: Augusto Baptista / Nuno Patinho.
•••Consultor para a obra de Gil Vicente: José Bernardes.
•••Direcção de cena: Margarida Dias.
•••Operação de luz: Rui Simão.
•••Operação de som: Rui Valente.
•••Montagem e execução de adereços: António Jorge, Alfredo Santos, Carlos Figueiredo e Rui Simão.
•••Execução de guarda-roupa: Elsa Rajado / Maria do Céu Simões.
•••Produção executiva: Rui Valente.
•••Promoção e relações com a imprensa: Isabel Campante.
•••Programa para o público escolar: Isabel Campante.
•••Colocação de espectáculos: Pedro Rodrigues.
o juiz da beira

A corte que se ri do Juiz e o Juiz que se ri da Corte

Já conhecíamos um tal Pero Marques. Sabíamos que era o rústico desposado por Inês Pereira, o asno que a levou ao encontro dos seus desejos de realização sexual depois de o cavalo (o escudeiro Brás da Mata) lhe ter derrubado algumas ilusões de vida arejada. Tínhamos sobretudo retido a ideia de um pacóvio cegamente devotado a uma rapariga e, nessa medida, incapaz de reconhecer o seu desdém: primeiro, quando esta troça da sua tacanhez; depois, já casado, quando encara com gosto acrescido qualquer capricho da mulher, mesmo quando associado a impulsos e enganos de adultério.

Ainda a partir da sua actuação no Auto de Inês Pereira apercebemo-nos de que se tratava de um morgado beirão, proprietário de terras e de gados, desconhecedor de etiquetas, tímido e ingénuo, quando comparado com os escudeiros “discretos”, soltos na música e na retórica do galanteio. Não era, portanto, uma personagem sem raízes; pelo contrário: tratava-se de um homem da terra, portador de atitudes e valores que o opunham não só a Brás da Mata mas também, de forma geral, a todos os escudeiros vicentinos, naquilo que neles existia de improdutividade e de funda hipocrisia.

Deve ter sido um êxito esta figura que vem à cena, pela primeira vez, em Tomar, em 1523. Só assim se explica que, dois anos volvidos, Gil Vicente a recupere e a converta em protagonista de uma nova peça. Vem agora em figura de Juiz, mas é a mesma pessoa. Para além do nome e da origem, não falta sequer a menção de sua mulher, Inês Pereira, a tal que, segundo ele mesmo informa, lhe lê as Ordenações “de cabo a rabo”. Em si mesma, a situação evoca a conhecida dificuldade do visado em ler e escrever (a tosca carta que no decurso do primeiro auto enviara a Inês é, a esse respeito, bem esclarecedora) e traz também à recordação a familiaridade da rapariga com as letras (alcançaria mesmo o latim e o alfaqui, como alardeia a mãe).

Ora, das terras da Beira, para onde se tinha retirado depois do casamento, chegavam à Corte ecos de sentenças disformes proferidas por este mesmo juiz e o Desembargador do Paço (pela mão de Gil Vicente) não hesita em o chamar. Aliás, o exercício da Justiça inscrevia-se nas preocupações mais imediatas do Poder: ainda em tempo de D. Manuel tinham-se publicado novas Ordenações e promovido a sua aplicação por corregedores devidamente qualificados.

Pero Marques vem pois junto da Corte para ser posto à prova e toda a sua actuação deve ser entendida nesse plano. Sairá ele “inteiro” dali? O primeiro teste revela-se decisivo. Trata-se de saber que tipo de justiça vai exercer no paço o dito “juiz de siqueiro”: Aceita adaptar-se a um novo espaço e aos hábitos que nele vigoram? Ou, mesmo fora da sua terra, conserva os hábitos e os critérios que lhe são próprios? A cena da instalação do tribunal com que abre o auto parece excepcionalmente longa mas ela certifica justamente uma luta tenaz entre o Juiz da Beira e a Corte que tenta assimilá-lo por todos os meios. Revelando grande obstinação, o rústico só aceita iniciar as audiências depois de removidos todos os adereços que ali significavam a justiça palaciana. Podemos assim concluir que não faz nenhum tipo de concessões. Mesmo deslocado, mesmo sentindo-se objecto de exame inspectivo, a sua voz não deixa de soar tal e qual [tal qual?] soava na sua Beira arcaica e remota: e os cortesãos, chamados para assistir “a coisa de rir”, vão, de facto, testemunhar um exercício de verdade. Aqui se introduz a tónica central da parvoíce. Na boca do porteiro da corte “é parvo este juiz”, não só porque exerce funções em circunstâncias insólitas, mas porque transbordam de parvoíce as suas sentenças, invertendo tudo o que está previsto na Letra e no Espírito da Lei.

Feito o pregão da audiência, não pode dizer-se que causem surpresa os contendores que se aproximam. Queixosos e réus são por demais conhecidos da Corte: Ana Dias diz que o cavalo do Rei lhe passa à porta e, na mesma linha, o escudeiro declara-se “privado” do monarca. De resto, os diferendos que os envolvem são também do mais corrente que possa imaginar-se. Pode até dizer-se, de alguma forma, que o dramaturgo se terá limitado a reeditar algumas das suas criações de maior impacto, em regime de emparelhamento explícito ou implícito, tendo por centro a alcoviteira Ana Dias: o escudeiro e o moço Fernando; o escudeiro e a alcoviteira; o sapateiro cristão-novo e ainda a alcoviteira que lhe desencaminha a filha. Mas há um último grupo de personagens que se constitui em verdadeira novidade: na cena vicentina ainda não tínhamos visto comparecer, ao mesmo tempo, um conjunto tão articulado: um Preguiçoso, um Amador, um Bailador e um Brigoso. São irmãos de sangue, desavindos por causa de uma herança; mas, mais profundamente, irmana-os a alienação: cada um deles se julga com direitos irrecusáveis. Ao que tudo indica, trata-se de caracterizar uma atitude geracional oposta à geração do pai, já defunto, evocado através do asno pelado, com que havia ganho a vida.

Isoladamente considerados, nenhum deles constituiria criação inédita. Pelo contrário. Pertencem bem ao mundo do Porteiro que apregoa fraudulentamente as terras da coroa, do escudeiro que quer comprar os favores da moirinha ou da alcoviteira que lhos quer vender muito caro; pertencem ainda perfeitamente ao mundo cristão que o sapateiro Alonso López amaldiçoa e não consegue sentir como seu. O que neles existe de novo é a sua complementaridade imediata. Cada um representa a extensão dos outros e, na sua globalidade, constituem uma espécie de síntese de todo o Portugal novo, ocioso e alienado, assim submetido a uma dura repreensão satírica.

Ao convocar o burro, reclamado por todos, o juiz Pero Marques pode provocar mais uma vez o riso da Corte, que se adivinha em crescendo de sentença para sentença. Mas pode ser que, naquele momento, os cortesãos esperassem já um desfecho daquele tipo. As sentenças anteriores funcionam no mesmo registo: louva-se o estupro cometido na filha de Ana Dias e a irreverência social do moço que será doravante servido e alimentado pelo amo: absolve-se a mesma alcoviteira, que apenas encaminha “o gato pera o toucinho”. Tudo em nome de uma lógica natural, aliás evocada em Latim, a verdadeira Língua do foro, onde se cristalizam as grandes normas e princípios do Direito romano. Aliás, a máxima bem poderia ser vista como lema emblemático do Juiz da Beira: Credo quo natura dat nemo negare potet. Confrontado agora com os quatro irmãos (só com o inofensivo e lasso Preguiçoso parece haver alguma proximidade), o magistrado tem que actuar em coerência: convoca o burro e dispõe-se a considerar a sua decisão como definitiva, superando assim qualquer tipo de argumentação que os herdeiros pudessem vir a produzir. Na prática, a sentença nega a legitimidade da herança em apreço. Não convoca o pai, que aliás não quis decidir em vida o destino do legado; mas quer tornar presente o que dele resta: um rasto de trabalho que não se ajusta a nenhum dos herdeiros.

Até pela sua extensão, a cena final constitui, portanto, uma síntese do pensamento do Juiz e uma condensação da sátira vicentina, dirigida a todos os representantes do Portugal novo, que havia renegado os valores do trabalho e da Natureza em nome de ideais sem fundamento, que corroíam a ordem comunitária. E a mensagem pode ser lida mais a fundo: confrontada com estas práticas, nenhuma Justiça é possível, nenhuma Justiça se pode revelar eficaz. Mais do que codificar normas e chamar juízes letrados a aplicá-las, afigura-se essencial corrigir costumes e mentalidades. Aplicando a Letra das Ordenações régias, o Juiz não teria outro remédio senão deferir as pretensões dos queixosos, ratificando, na prática, os procedimentos correntes. Teria, por exemplo, que encontrar um dono para o burro, destrinçando critérios e identificando prioridades de posse, mesmo sabendo que essa posse seria injusta e inútil. Ora, o que se infere da actuação de Pero Marques é que o cumprimento formal da Justiça não basta para corrigir as injustiças, os desmandos e os desconcertos profundos.

Como poderia ter reagido a Corte de D. João III a um espectáculo deste tipo? Ter-se-á divertido pura e simplesmente? Terá encontrado alguns motivos para reflexão? É difícil assegurar seja o que for, a este respeito. Talvez tenha havido reacções muito diferentes. De resto, ainda hoje se pode ler a peça como exercício de burlesco mais ou menos gratuito. Será essa, porventura, a leitura mais fácil e imediata. Mas também se pode ver nela uma prática artística votada ao riso ambivalente (de Pero Marques em relação à corte e da corte em relação a Pero Marques); ainda mais mediatamente, pode entender-se a peça como verdadeira sátira de rectificação social e mental.

E também não adianta esconder que qualquer exercício de encenação implica escolhas deste tipo. No caso vertente, revela-se significativo o investimento na segunda e na terceira dimensões. Na leitura d’ A Escola da Noite existe lugar para o cómico, evidentemente. Pero Marques não deixa de ser o parvo do teatro medieval e a teatralidade da sottie (género que tem o parvo como figura central) não dispensa o riso. Mas, neste caso, parecem ir bem mais longe as apostas de exploração teatral. A presença em cena de Inês Pereira, por exemplo e a pose de leitura adoptada por todas as personagens, fazem do Livro um tópico estruturante, enquanto instrumento regulador de condutas colectivas. O Juiz é a única personagem que não precisa de ler. As sentenças— devidamente destacadas em termos de dicção e movimento de cena, representam, assim, não apenas um desvio das Ordenações mas a sua própria contravenção. E também não é por acaso que a última sentença (súmula de todas as outras) é proferida literalmente em cima do próprio livro, significando a sua derrota absoluta. Calcar a Lei, evidenciar a sua insuficiência moral, eis pois a orientação satírica que o encenador parece ter privilegiado, incorporando o fundo cómico mas colocando-o ao serviço de uma mensagem moral de larga abrangência, no tempo de Gil Vicente e até no nosso próprio tempo.

Apesar de tudo, perderam-se alguns dos sentidos que devem ter sido percebidos e valorizados pelo público de Quinhentos. Perdeu-se talvez, em toda a sua amplitude, o sentido inerente ao próprio estatuto de beirão que identifica Pero Marques. Da Beira tinham já vindo aos palcos da corte, pela mão de Gil Vicente, muitos pastores verosímeis. De lá viria ainda, alguns anos mais tarde, um insinuante clérigo pouco cumpridor de votos, embora caçador hábil, marido diligente e pai lúcido e desenganado em relação às aptidões do filho. De lá, dessa Beira que pode afinal estar relacionada com a própria biografia de Gil Vicente, tinha vindo sistematicamente um contrapeso de verdade trazida à Corte com o intuito alternado ou simultâneo de fazer rir e de fazer pensar.

Apesar de todas as tentativas de integração que possam fazer-se, porém, o Juiz da Beira é uma das peças mais desacompanhadas do repertório vicentino. Podemos até reconhecer nela personagens e situações emigradas de outros autos. Mas talvez em nenhuma outra se opere uma oposição tão clara entre o Portugal agrário e o Portugal dos comércios enganosos, que gravita em torno da Corte. Em nenhuma se leva tão longe o investimento na parvoíce, com tudo o que isso implica em termos de crítica social que passa pelo riso mas está longe de se esgotar nele. Por último, parece claro que em poucas peças como nesta a teatralidade assume planos de significação tão decisiva. N’0 Juiz da Beira, o texto quase não fala sem a cena. Ou fala mal e distorcidamente.


José Augusto Cardoso Bernardes
in programa do espectáculo. Saiba mais sobre os conteúdos do programa aqui.

Sobre este espectáculo:

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